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BdP Revista, Revista Interna do Banco de Portugal

Entrevista com Peter Praet, Membro da Comissão Executiva do BCE, realizada por Isabel Arriaga e Cunha em 18 de junho de 2018 e publicada a 2 de novembro de 2018

A Europa está a celebrar o 20.º aniversário do Banco Central Europeu (BCE) e, dentro de alguns meses, o 20.º aniversário do euro. No seu entender, quais são as principais realizações e êxitos destes 20 anos?

Cumprem-se agora 20 anos desde que a responsabilidade pela política monetária foi confiada a uma nova instituição europeia, que tem o mandato de manutenção da estabilidade de preços. Este passo constituiu um avanço importante no processo de construção de uma união cada vez mais estreita entre os povos da Europa. Somos uma instituição europeia que tem sido capaz de decidir e de atuar, tanto em períodos favoráveis como em períodos de grandes desafios. Trata-se de um êxito assinalável do ponto de vista institucional. E temos cumprido o nosso mandato em tempos muito difíceis – apesar das crises financeiras e económicas que marcaram a última década. O euro é uma moeda estável e segura. Com 74% no Eurobarómetro, temos a taxa de aprovação mais elevada para a moeda única desde 2004. É um resultado notável, sobretudo se considerarmos a existência de forças políticas fortes que estão a pôr em causa a integração europeia.

Assim sendo, considera que o BCE tem estado à altura das suas responsabilidades até à data?

O BCE teve três presidentes nestes 20 anos. Surgiram, por vezes, diferenças de opinião, o que é perfeitamente normal num órgão de decisão que hoje compreende 25 membros, mas o Conselho do BCE tem sempre demonstrado um forte sentido de colegialidade. Estamos todos plenamente empenhados no cumprimento do nosso mandato e sempre recetivos ao debate e às ideias uns dos outros. É por esta razão que o BCE tem evidenciado uma permanente capacidade e disponibilidade para atuar, sempre que foi necessário e nos limites do seu mandato. Mas, voltando à sua questão: quais são então os maiores êxitos destes 20 anos? O euro foi criado, porque a existência de uma moeda única é condição necessária para a conclusão do mercado único. Esta asserção permanece verdadeira, mas é necessário mais do que uma moeda comum para que o mercado único funcione adequadamente: quando se tem uma moeda comum com um mercado único em que os trabalhadores, as mercadorias e os serviços circulam livremente, é-se impelido a alcançar um grau mais elevado de integração política. Existe a necessidade de uma maior integração europeia. Esta integração pode levar tempo a alcançar, não vai concretizar-se da noite para o dia, mas cada decisor político deve ter em mente que é necessária uma maior integração. Se não concordássemos com esta necessidade e negligenciássemos o elevado grau de interdependência entre os Estados‑Membros, correríamos o risco de retroceder – o que provavelmente aconteceria de uma forma brutal. Neste sentido, a crise das dívidas soberanas funcionou como um alerta e conduziu a avanços substanciais no sentido da integração europeia, nomeadamente com a criação do Mecanismo Europeu de Estabilidade e do Mecanismo Único de Supervisão.

O BCE é uma instituição federal e certas competências, como a concorrência e as políticas comerciais, são, tal como disse, europeias. Significa isto que o euro só pode sobreviver num contexto federal, numa união federal?

Colocando a questão em termos muito simples: no longo prazo, os europeus decidirão, tanto quanto possível, ao nível das comunidades locais e dos países e decidirão conjuntamente ao nível europeu, sempre que necessário. É o princípio da subsidiariedade. Que decisões devem ser tomadas em cada um dos níveis é uma questão aberta a discussão.

O euro é a moeda da União Europeia. Para usufruir plenamente das vantagens da União Monetária, é essencial criar um enquadramento institucional sólido para outras políticas, em que as responsabilidades sejam atribuídas ao nível de decisão adequado. Algumas políticas, certamente não todas, devem ser do foro de competência da União. Trata-se de um longo processo e a União já demonstrou a capacidade para fazer progressos.

Formou-se um amplo consenso, após a crise financeira, de que os bancos seriam melhor supervisionados ao nível europeu. Consequentemente, a responsabilidade pela supervisão bancária foi atribuída à União, na sequência de uma decisão tomada pelo Conselho Europeu em junho de 2012. Em algumas áreas de política, as normas não são suficientes – são também necessárias instituições. A gestão de crises é outro exemplo. As regras de que dispúnhamos antes da crise nem sequer previam a possibilidade de ocorrência de uma crise, o que tornou a resposta à crise das dívidas soberanas na área do euro um desafio particularmente difícil. Foram extraídas lições desta experiência dolorosa e constituída uma instituição permanente para a gestão de crises – o Mecanismo Europeu de Estabilidade.

Atribuir a competência pela política monetária à União foi relativamente simples, dado o amplo consenso social acerca da existência de um banco central e da ideia de que este deve ser independente e prosseguir um único objetivo: a estabilidade de preços. A definição de uma adequada partilha de responsabilidades entre a União e os seus Estados-Membros tem sido, pela sua natureza, um longo processo histórico e continuará a suscitar acesos debates políticos na Europa. Esses debates devem ser bem-vindos, pois fazem parte da forma como escrevemos a nossa história comum.

O mandato do BCE é suficiente para uma moeda única? Não deveria esse mandato incluir, por exemplo, o papel de credor de última instância?

O papel de credor de última instância é um papel tradicional dos bancos centrais e nós desempenhamos esse papel, o que contribui para a estabilidade financeira. O problema está em alguns economistas e certos políticos afirmarem que o banco central deveria estar pronto a financiar os défices públicos, o que é incompatível com o mandato de um banco central orientado para a estabilidade de preços. É por este motivo que, no Tratado, existem disposições a proibir o financiamento monetário e a garantir a independência dos bancos centrais. Numa união monetária, é, todavia, importante ter instituições que possam apoiar os Estados-Membros confrontados com graves dificuldades financeiras. Se assim não for, enfrentaremos um risco permanente de instabilidade. Este é um dos ensinamentos da crise e a razão para a criação do Mecanismo Europeu de Estabilidade, uma instituição permanente de gestão de crises.

Para o Mecanismo Europeu de Estabilidade poder desempenhar devidamente o seu papel, não deveria tornar-se uma instituição europeia, com codecisão ao nível da “comunidade”? Ou seja, uma instituição federal, em vez da atual instituição intergovernamental?

Para uma gestão bem-sucedida de crises, é essencial dispor de um procedimento de tomada de decisões eficiente, dado que a gestão de crises exige uma atuação célere e eficaz. Há o risco de as crises serem exacerbadas por regras de decisão, como a unanimidade, que impedem a tomada atempada de decisões e levantam dúvidas quanto à eficácia das instituições de gestão de crises. Os procedimentos de tomada de decisões de natureza federal são, neste sentido, preferíveis aos procedimentos de natureza governamental, que muitas vezes incluem o direito de veto.

Na União Económica e Monetária (UEM), o financiamento de emergência é essencialmente concedido sob condicionalidade em matéria de políticas económicas e orçamentais. Não se trata de uma transferência, mas antes da prestação de apoio financeiro para facilitar o processo de ajustamento.

É esta a forma correta de lidar com potenciais crises?

Penso que sim. É da responsabilidade dos Estados-Membros considerar as respetivas políticas económicas uma questão de interesse comum e assegurar a sustentabilidade das finanças públicas. Os desenvolvimentos económicos adversos podem colocar um Estado-Membro numa situação de tensão financeira e suscitar a necessidade de reformas. As políticas mal concebidas, o laxismo orçamental, por exemplo, podem também conduzir um país a uma situação de crise. Pertence à responsabilidade coletiva dos Estados-Membros assegurar o bom funcionamento da UEM e foi por este motivo que os mesmos acordaram na necessidade de um quadro de gestão de crises.

Os Estados-Membros da UEM perderam os instrumentos de ajustamento tradicionais para lidar com os choques – designadamente, a desvalorização da moeda – num momento em que a UEM não dispunha de instrumentos adequados para a gestão de crises...

É verdade. A UEM não estava completa quando a crise eclodiu. Quando irrompeu a crise, alguns países apresentavam finanças públicas debilitadas. As dúvidas a respeito da qualidade creditícia dos países levaram os mercados a exigir prémios de risco mais elevados, pressionando ainda mais as suas finanças públicas. Esses países entraram então num círculo vicioso, em que as expetativas de que fossem incapazes de reembolsar a dívida fizeram subir as taxas de juro e, como numa profecia que se cumpre a si própria, as taxas de refinanciamento mais elevadas fizeram as finanças públicas dos países em questão parecer cada vez mais insustentáveis, conduzindo, assim, a uma crise de liquidez. Se dispusermos de uma facilidade de cedência de liquidez condicional, um país não pode ser empurrado para uma crise de liquidez com base em expetativas do mercado que se autorrealizam, pois os mercados sabem que existe uma facilidade para dar resposta à falta de liquidez. O que acalmará também a especulação.

Mas, nesse caso, os Estados em dificuldades podem ficar ainda mais endividados...

Não, porque não temos forçosamente de utilizar estas facilidades. O facto de existir um mecanismo de apoio pode, por si só, evitar ataques especulativos baseados em expetativas do mercado autorrealizáveis. É importante sublinhar que, para terem acesso a facilidades de cedência de liquidez como as disponibilizadas pelo Mecanismo Europeu de Estabilidade, os países têm de aceitar a condicionalidade em termos de políticas e concordar com a aplicação de um programa de ajustamento. Concedo, no entanto, que, quando a crise deflagrou, surgiu um “jogo de acusações” entre países com excedente e países com défice da balança corrente.

Não deveria, finalmente, reconhecer-se este facto?

É verdade que, durante a crise, se verificou alguma assimetria no mecanismo de ajustamento. Historicamente, os países deficitários foram sempre mais frágeis que os países excedentários. Há, porém, um ponto importante, que devemos ter em mente. Que teria acontecido se a crise tivesse deflagrado sem que a nossa União Monetária garantisse a mobilidade dos capitais? Por exemplo, quando os sistemas bancários espanhol ou português enfrentaram dificuldades, os credores holandeses e alemães foram reembolsados. A alternativa teria sido a imposição de controlos sobre os movimentos de capitais e teria ocorrido uma espécie de renegociação da dívida – que não aconteceu em virtude da União Monetária. Com a diretiva relativa à recuperação e resolução bancárias, dispomos agora de mecanismos de partilha de encargos aplicáveis aos credores.

Por falar na diretiva relativa à recuperação e resolução bancárias, não é perigoso que a união bancária permaneça um projeto incompleto?

Não devemos permanecer “no meio do rio” por demasiado tempo. É por este motivo que precisamos de um roteiro claro para completar a união bancária num período relativamente curto – não amanhã, mas num futuro não muito distante. É insólito que a responsabilidade pela supervisão seja coletiva, mas as consequências, se alguma coisa correr mal, retornem para as autoridades nacionais. Tenho afirmado muitas vezes que devemos ir mais longe. Mas, por outro lado, ouvimos dizer que existem carteiras herdadas do passado, pelo que, antes de avançarmos para a união bancária, temos de solucionar o problema do crédito mal parado (non-performing loans – NPL).

Os países que se queixam são sobretudo aqueles que tiveram a oportunidade de sanear os seus bancos com dinheiros públicos antes de 2013, quando as regras europeias sobre ajudas estatais estavam suspensas. Agora, os seus bancos foram saneados, enquanto os bancos de alguns outros países, que foram os principais a sofrer com a crise económica, enfrentam uma pesada herança de NPL, o que, politicamente, impede a união bancária de progredir. Será que é justo?

É certo que alguns países injetaram muito dinheiro público no sistema bancário durante a crise. O apoio da Alemanha ao seu setor bancário teve um impacto na dívida pública superior a 10% do PIB, no seu máximo. Agora, é mais baixo, pois a maioria desses fundos foi recuperada. Num país como a Itália, as dificuldades surgiram mais tarde, após a alteração das regras. A transição para as novas regras poderia ter sido melhor concebida.

Será que faz sentido esta discussão interminável sobre redução do risco antes de se registarem progressos na partilha de riscos?

Hoje em dia, os bancos continuam expostos sobretudo à economia e à dívida nacional. A “espiral infernal” entre os bancos e os emitentes soberanos ainda não foi totalmente quebrada. Uma das formas de reforçar a partilha de riscos é a consolidação transfronteiras, o que não significa que deixámos de precisar de bancos locais. Os bancos locais ainda são muito importantes para o financiamento da economia, mas é necessária consolidação. A regulamentação não incentiva os bancos neste sentido, devido aos requisitos de fundos próprios e de liquidez nas filiais.

É também importante uma maior diversificação internacional dos obrigacionistas dos bancos, de forma a evitar situações em que apenas os credores localizados num país específico sejam afetados no caso de insolvência de um banco.

Aquilo de que hoje realmente precisamos é de um limite claro. Que implicações teria para um banco estar numa união bancária completa e quando vai a mesma concretizar-se? Existe ainda demasiada incerteza para que os bancos possam pensar de uma perspetiva europeia e para se consolidarem a nível transfronteiras – e eu vejo aqui um problema.

A UEM foi lançada com uma promessa de paz, segurança e prosperidade e foi dito que aceleraria a integração política da União Europeia. O que é que correu mal?

A integração europeia é um processo, sendo importante aprender com a experiência adquirida até ao momento para realizar novos progressos. Gostaria de salientar dois pontos. Em primeiro lugar, a UEM surgiu com expetativas demasiado elevadas: por exemplo, de que as taxas de crescimento registadas imediatamente antes, ou no início da UEM, se manteriam para sempre. Muitos contraíram empréstimos com base nestas expetativas otimistas. Daí a existência de uma fragilidade de base nos mercados de dívida. O segundo fator foi a falta de mecanismos para lidar com o sobre‑endividamento. A crise constituiu uma motivação para estabelecer a união bancária e melhorar a regulamentação do setor financeiro.

Regressando à sua questão: a União cumpriu a sua promessa de prosperidade e segurança? O mercado único é uma fonte de prosperidade e precisa de uma moeda única. As crises monetárias da década de 90 do século XX foram particularmente negativas para o mercado interno. Basta recordar a grave crise cambial que sofremos em 1992 e 1993, antes da passagem à União Monetária. Na Bélgica, por exemplo, as pessoas estavam a importar automóveis italianos diretamente de Itália, onde os preços eram muito mais baixos. Era possível fazê-lo no mercado interno. Os concessionários e as oficinas de automóveis na Bélgica começaram então a discriminar estes veículos, porque não tinham sido comprados na Bélgica. Quando chegavam a uma oficina para manutenção, os carros eram colocados em lista de espera. Na prática, eram criadas barreiras não tarifárias como reação ao efeito cambial. Este comportamento estava a comprometer o próprio princípio de um mercado interno.

Diria então que, para os países mais atingidos pela crise, como Portugal ou a Grécia, a situação teria sido muito pior se não estivessem no euro?

A meu ver, sim. Para as economias abertas de pequena dimensão, as taxas de câmbio podem ser um fator muito desestabilizador. É por este motivo que as economias de menor dimensão procuram normalmente indexar as suas taxas de câmbio a uma moeda estável. Na União Monetária, não foi prestada atenção suficiente às divergências em termos de competitividade, dado que essas divergências aumentam ao longo do tempo, pouco a pouco, e, em determinada altura, é necessário um ajustamento significativo. Devíamos ter dedicado mais atenção às divergências económicas.

Por que razão?

Para a elaboração de políticas económicas sólidas, é importante detetar com antecedência a erosão da competitividade. Deveríamos, por exemplo, compreender por que motivo a Alemanha conseguiu aumentar o valor acrescentado na indústria transformadora durante a crise, ao passo que em outros países o setor foi afetado. O que aconteceu? Por que motivo se saíram melhor os fabricantes alemães? A descentralização das negociações laborais para o nível da empresa demonstrou ser útil para atenuar o impacto da crise. Porque colaboraram os sindicatos alemães para que existissem contratos ao nível da empresa? Devemos também analisar a situação orçamental, bem como o ensino e a formação. Na Alemanha, existem muitos postos de trabalho, mas, ao mesmo tempo, as desigualdades aumentaram. Em França, a situação é inversa: menor desigualdade, mas desemprego mais elevado. É importante compreender muito melhor estes desenvolvimentos para conceber melhor as políticas económicas.

Os cidadãos europeus parecem estar cada vez mais insatisfeitos com a Europa. Em muitos países, as pessoas sentem-se mais pobres, estão cansadas de austeridade e responsabilizam a Europa – como está a acontecer, por exemplo, em Itália. Cresce, por toda a parte, a preferência dos eleitores por partidos anti-europeus. Em que medida esta tendência é perigosa para o projeto europeu?

Creio que a maior parte das pessoas compreende que o nível europeu é essencial. Uma ampla maioria dos cidadãos está de acordo com a ideia de que a Europa pode proporcionar melhores respostas para certos problemas internacionais. Por exemplo, em Itália, de acordo com o Eurobarómetro, as pessoas afirmam que as migrações devem ser geridas ao nível europeu. Pensemos na ameaça do protecionismo e na resposta que é preciso dar a esta questão, nas alterações climáticas ou na preservação do ambiente: as pessoas acreditam que estas questões devem ser resolvidas coletivamente, pois é desta forma que podemos fazer-nos ouvir na cena mundial. Mas também se sentem dececionadas, em certos casos, pela incapacidade dos Estados‑Membros da União Europeia de decidir em conjunto e veem as discussões entre Estados‑Membros como um jogo de empurrar os problemas para os vizinhos. E, muitas vezes, a reação é: vamos tratar do assunto a nível nacional, porque, a nível europeu, as coisas não funcionam. O meu argumento é: a Europa pode dar as respostas certas, mas todos temos de estar à altura das nossas responsabilidades.

E se os europeus se sentirem tentados a experimentar uma solução diferente?

A maioria das pessoas compreende os riscos e tudo o que perderíamos se desistíssemos do objetivo de uma união cada vez mais estreita. Todos nos tornaríamos mais fracos e acabaríamos por perder influência. Se pretendemos decidir de que forma queremos viver, temos de decidir em conjunto. Se queremos preservar a nossa soberania, temos de a partilhar. Devemos pensar de uma perspetiva europeia e seguir em frente.

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